domingo, 18 de janeiro de 2009

Notícia - Nascer sem doenças: Até onde pode e deve ir a Ciência?

Na edição nº828 da revista Visão encontra-se um artigo na secção Saúde acerca de famílias que recorreram à técnica do diagnóstico genético pré-implantatório (DGPI) para salvar os filhos de cancros mortais. Dado o tema da notícia, achei muito oportuno pôr aqui este artigo, embora com supressões.

Concebidos sem doença

Quebrar a corrente de transmissão da hemofilia ou de cancros hereditários está ao alcance da Ciência. Em Portugal, mais de 50 famílias já recorreram à genética, antes da gravidez, para salvar os filhos de patologias mortais.
Por Sara Sá

Pedro (…) Desde o nascimento que sofre de hemofilia, uma doença hereditária, causadora de deficiências a nível da coagulação do sangue. Esta alteração leva a que a mais pequena pancada se transforme numa hemorragia prolongada e numa inflamação severa e dolorosa, afectando as articulações. Associada ao cromossoma X, a doença atinge apenas os homens sendo a mãe a transmissora do gene alterado. Susana Reino, 36 anos, funcionária do Instituto de Meteorologia, e Humberto Barreto, 38 anos, director financeiro, os pais de Pedro, foram surpreendidos pelo diagnóstico, quando o menino tinha dois meses.
«Os primeiros dois anos de vida do Pedro foram muito complicados», conta Susana, que ignorava ser portadora do gene alterado. «Custa muito ver um filho sofrer.» Para o casal tornou-se claro que não voltariam a entrar na roleta-russa dos genes, arriscando uma probabilidade de 25% de virem a ter um rapaz doente e de 25% de terem uma rapariga portadora. «O Pedro queria muito ter um irmão, mas eu sabia que não iria pôr mais um filho no mundo com esta doença», assume Susana.
Foi então que se viraram para o admirável mundo novo da genética. No início da década de 90, surgiu uma técnica talhada para casos como o deles: o diagnóstico genético pré-implantatório (DGPI). Mediante um ciclo de fertilização in vitro, seguido de análise genética, seleccionam-se embriões saudáveis para a implantação no útero. São candidatos a este procedimento casais com suspeita de distúrbios cromossómicos, como trissomia 21, ou história familiar de doenças genéticas, como a fibrose quística ou a distrofia muscular. Há ainda casais que recorrem ao processo para terem um bebé compatível, a nível de medula, com um irmão, ou outro familiar, doente.


STOP AO CANCRO DA MAMA
No fim-de-semana passado, milhares de pessoas, no Reino Unido, encheram-se de esperança com o anúncio do nascimento de uma menina, livre de uma forma hereditária de cancro da mama que atingiu três gerações da família paterna. Os portadores do gene BRCA1 alterado apresentam uma probabilidade de 80% de virem a desenvolver uma forma de cancro da mama responsável por 5% a 10% dos casos totais. Teria ainda uma probabilidade de 60% de vir a ter cancro do ovário. (…) Além disso, os portadores desta mutação têm 50% de hipóteses de a passarem aos seus descendentes. Com a aplicação do DGPI quebrou-se a corrente da transmissão. «Mostrámos que esta técnica pode ser aplicada para parar o ciclo devastador da doença», afirma o médico inglês. A mãe da menina, que assistiu ao desenrolar da doença em todas as mulheres da família do marido, admitiu ao jornal Daily Telegraph que não seria capaz de olhar a filha de frente, caso não tivesse tentado a DGPI.
Apesar do entusiasmo britânico, esta não é uma estreia. (…) Também o Reproductive Genetics Institute, de Chicago, uma autêntica fábrica de fertilização in vitro, apresenta, na sua extensa lista de doenças testadas, a pesquisa do BRCA1 e do BRCA2, outro gene implicado numa forma hereditária de cancro da mama e dos ovários.
E o serviço de genética da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que desenvolveu o protocolo de aplicação de DGPI em 1999, prepara-se, igualmente, para tentar seleccionar um embrião sem a mutação do BRCA2, recorrendo à colaboração com um centro em Bruxelas para análise genética. A unidade portuguesa já fez mais de 200 ciclos de fertilização in vitro, com vista à aplicação de DGPI, sendo que «os testes mais requisitados são os de triagem da Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF) [conhecida por doença dos pezinhos] ou a doença de Huntington», relata Filipa Carvalho, 39 anos, especialista da Universidade do Porto.

Susana e Humberto começaram por rumar ao Porto, quando Pedro tinha 4 anos. Na altura, para os casos de hemofilia, o processo baseava-se em selecção de sexo. Ou seja, eram escolhidos os embriões femininos, uma vez que, na pior das hipóteses, se trataria de um bebé portador da doença. (…) Foi então que decidiram procurar o Instituto Valenciano de Infertilidade, com uma lista de duas dezenas de doenças triadas, e que, para a hemofilia, se baseava na detecção do gene mutado. Todo o tratamento ficou em €10 500, inteiramente pagos pela ADSE. Quando Alexandre nasceu, Pedro sentiu que a família estava completa: «Finalmente, somos quatro!»

UNS PAGAM, OUTROS NÃO
Portugal é pioneiro na aplicação da DGPI à muito portuguesa doença dos pezinhos. (…) Mesmo assim, ainda há quem arrisque, quem não conheça as opções que a ciência oferece ou quem não tenha os mil euros necessários para a estimulação hormonal exigida num processo de fertilização in vitro.
«Nos casos em que a mulher é a portadora da doença e já apresenta sintomas, o casal não tem qualquer tipo de custos com a estimulação hormonal; quando é o homem o portador, o casal tem de pagar a medicação, pois, neste caso, a mulher não goza de isenção», denuncia o enfermeiro Carlos Figueiras, 56 anos, da Associação Portuguesa de Paramiloidose. As taxas de sucesso são à volta de 25%, o que implica que, «em média, os casais tenham de sujeitar-se a quatro ciclos de fertilização para conseguirem uma gravidez», conta Natália Oliveira, 34 anos, assistente social da Associação. «É comum o embrião doente ter maior vitalidade do que o saudável. Além disso, a própria biopsia do embrião, necessária à análise genética, pode interferir com a sua dinâmica», explica Alberto Barros, 51 anos, director do Serviço de Genética da Faculdade de Medicina do Porto.
Jorge Neto, 40 anos, viu a mãe morrer de paramiloidose e, desde os 18 anos, que sabe ser portador da doença. Nesta altura, decidiu que nunca teria filhos. Num congresso, ouviu falar da possibilidade de fazer uma DGPI e, com a mulher, decidiu candidatar-se. «Tivemos uma sorte extraordinária. Conseguimos uma gravidez à primeira tentativa e agora temos duas filhas lindas, de 3 anos», conta Jorge, que já se sujeitou, com sucesso, a um transplante hepático. «Depois de ter passado pelo processo, orientei mais de 20 casais para o DGPI.»
Ana (nome fictício), de 33 anos, advogada, não teve a mesma sorte. Só descobriu que era portadora da doença quando se manifestaram, na mãe, os primeiros sintomas. Nessa altura, já tinha tido um filho. (…)
Mesmo assim, Ana tentou aproximar-se do seu sonho de ter cinco filhos e submeteu-se a um DGPI. «Era um caso perfeito, diziam os médicos, porque sou jovem e fértil», conta. Mas não teve sorte. A implantação dos dois embriões resultou num aborto, difícil de superar. Por agora, virou-se para a adopção. «Conheço muitos doentes com PAF e alguns optam por ser pais de forma natural. As pessoas não vão deixar de ter filhos por causa desta doença.»
Aliás, a aplicação da técnica não é consensual e, de cada vez que se anuncia mais um caso de sucesso, há sempre quem faça ressuscitar o fantasma da eugenia. Países como a Itália ou Alemanha proíbem qualquer forma de aplicação de DGPI. (…)
Para o médico, é importante que a sociedade saiba exactamente o que está em causa. «Há muita desinformação, mas as pessoas devem confiar na comunidade científica.» Susana e Humberto confiaram. E jamais se arrependerão.

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